quinta-feira, 23 de julho de 2015

Ghost writer, ghost writing


Na semana retrasada fui ao cinema ver "Os olhos amarelos dos crocodilos", porque adoro cinema e também porque me interesso por ghost writing.


O filme francês, baseado em um livro homônimo de Katherine Pancol, mistura drama e comédia e traz à tona problemas familiares, enquanto retrata uma típica história fictícia de ghost writing em que a ghost writer se dá mal.

Edição de bolso francesa

Edição brasileira

Iris e Josephine são irmãs. Iris é bonita, rica, sofisticada, mãe de um filho ao qual não presta atenção, mas se sente entediada porque seus dias são preenchidos com futilidades; o marido trabalha bastante para sustentar todo o luxo de que desfrutam, mas ela parece não reconhecer nada disso. Josephine (Jo) é uma pesquisadora superespecializada em Idade Média, tem duas filhas e é casada com um sujeito cafajeste que, após perder o emprego, parece não fazer muita questão de encontrar outro, além de ser infiel e todos saberem. Para complicar a situação, o marido sai de casa (Jo o expulsa), vai viver com a amante em um lugar distante e trabalhar com a criação de crocodilos, e ela passa a ter que assumir todas as despesas da família.

Iris (Emmanuelle Béart)

Jo (Julie Depardieu, filha do ator Gerard Depardieu)

Em um jantar com amigos do marido, ao ser questionada sobre o que andava fazendo, para a surpresa de todos, Iris responde que está escrevendo um romance sobre uma comerciante do século XII. Um dos amigos do marido é editor e se interessa em publicar o livro e posteriormente a pressiona para assinar um contrato com a editora e mostrar uma parte do original.

Iris não consegue escrever nada e pede ajuda à irmã. Jo está em uma situação financeira difícil, traduzindo textos para a empresa do cunhado (marido de Iris) para complementar o salário, mas resiste até onde pode. Até que surge uma dívida não quitada do marido no banco (da qual até então ela nem sabia) e ela acaba aceitando escrever o livro, que será assinado por Iris, mas cujos pagamentos de direitos autorais irão todos para ela.


Enquanto Jo escreve o livro, tramas secundárias são reveladas: o pai das irmãs já é falecido e era ele quem apoiava Jo, enquanto a mãe sempre protegeu e mimou Iris, por ela ser mais bonita e acreditar que ela era muito melhor que Jo; a mãe de Iris e Jo é uma megera e seu segundo marido tem uma amante com quem ele pretende ter um filho e fugir; a filha adolescente de Jo a trata como se ela fosse um lixo, enquanto a filha mais nova a adora; Jo flerta com um rapaz que sempre está na biblioteca fazendo pesquisas também.


O livro de Jo/Iris é publicado e faz muito sucesso, vende milhares de cópias, e Iris passa a desfrutar uma vida de fama e sucesso: todos querem entrevistá-la e fotografá-la. Embora ela não tenha nada de muito interessante a dizer, a imagem dela (uma mulher muito bonita e bem-sucedida) ajuda a divulgar ainda mais o livro.

Jo se sente mal porque, apesar de ter conseguido pagar a dívida contraída pelo marido e não ter mais problemas financeiros, nunca será reconhecida por seu trabalho como escritora.


No fim Iris acaba sendo desmascarada, como provavelmente a maioria dos espectadores esperava/ queria.

Para quem se interessar, o trailer do filme é este:


Nunca precisei trabalhar com (e nem como) ghost writer, uma profissão aparentemente ainda pouco difundida no Brasil, então não sei como as coisas funcionam na realidade, mas encontrei essa entrevista com a ghost writer Tânia Carvalho, que esclarece vários pontos. Me surpreendi com os valores cobrados pelos profissionais: em média, R$ 25 mil (em 2012, quando a entrevista foi concedida). Acho interessante a forma como ela encara o próprio trabalho: 

Exame.com: Você não fica triste de seu nome não aparecer?
Tânia: Não me incomoda em nada. Não é o meu trabalho, eu só faço organizar as ideias de outros, especialmente porque o meu forte são as biografias. É a vida deles, as palavras deles, as posições dele.
Não tenho nada a ver com isso.
Também encontrei um site (www.ghostwriter.com.br) em que o ghost writer, que não se identifica, oferece seus serviços, explica como funciona o trabalho, disponibiliza seu currículo e até responde à pergunta: "Não é vergonhoso usar os serviços de um Ghost Writer?".

Tanto a Tânia quanto este ghost writer do site enfatizam que celebridades, artistas, empresários muitas vezes não têm tempo e/ou habilidade para escrever suas biografias ou mesmo livros de suas especialidades, então é normal contratar alguém para fazer isso por eles. Até aí, ok. Mas será que isso é justo com os leitores que compram os livros sem saber desse pequeno detalhe? Não seria mais honesto com os leitores se a pessoa informasse que as ideias e memórias são dela, mas quem escreveu foi outra pessoa? Recentemente li a (auto)biografia do Sebastião Salgado, Da minha terra à Terra, e consta na capa: "Sebastião Salgado / com Isabelle Francq", ou seja, fica claro que as memórias são dele, a voz é dele, mas quem organizou e escreveu mesmo foi a Isabelle, e isso de forma alguma diminui o valor e a beleza da história e dos trabalhos do fotógrafo. Se não me engano, a autobiografia da Bruna Surfistinha/ Raquel Pacheco, O doce veneno do escorpião, também foi escrita por um jornalista e consta o nome dele na 1ª edição, a de capa preta - lembro que na época em que li, achei honesto da parte da Bruna/ Raquel assumir que talvez não tivesse tempo/ habilidade para escrever/ organizar as próprias memórias e delegar isso a alguém mais competente. O resultado dos dois livros é ótimo e convence.

Em geral, ghost writers da vida real escrevem (auto)biografias e livros sobre áreas específicas para outras pessoas e, relativamente, isso não exige "criatividade" em comparação com livros de ficção e poesia, por exemplo. Mas será que existem pessoas com total ausência de vaidade (ou seja lá o que for) dispostas a escrever livros de ficção ou poesia e deixar que outras pessoas assinem? E como esses ghost writers se sentiriam se o livro fizesse um grande sucesso, fosse por crítica e público?

Anteontem saiu essa matéria [em inglês] com a ghost writer americana Hilary Liftin, em que ela fala um pouco sobre a profissão e também sobre um livro de ficção assinado por ela, provavelmente baseado em fatos e, aparentemente, na vida do ex-casal 20 Tom Cruise e Katie Holmes. Como ela assumidamente escreve (auto)biografias para famosos, deve ter um material farto para "ficcionalizar". Seu livro, Movie Star by Lizzie Pepper, deve ser um misto de comédia e drama e provavelmente haverá bastante interesse nele por conta da especulação: o que é ficção e o que foi baseado em fatos que a autora ouviu enquanto ghost writer de famosos hollywoodianos?


Para quem se interessar, o livro já está à venda na Amazon.com.

Outros filmes que também têm ghost writers como protagonistas que vi são:

O escritor fantasma (do Roman Polanski; o outro filme homônimo é péssimo!): depois que um ghost writer contratado por uma editora para escrever a (auto)biografia do ex-primeiro-ministro britânico [fictício] morre misteriosamente, um outro ghost writer fica responsável pelo trabalho. O ex-primeiro-ministro havia sido criticado por supostamente ter autorizado a prisão e tortura supostos terroristas e sua autobiografia seria uma tentativa de limpar seu nome. No entanto, o ghost writer começa a descobrir fatos sobre o passado do ex-primeiro-ministro e conclui que está correndo um grande perigo.


Entre nós (filme nacional dirigido por Paulo e Pedro Morelli): um grupo de jovens amigos de classe média alta vai passar uns dias em um sítio na Serra da Mantiqueira e, em um dado momento, eles resolvem escrever uma mensagem em um pedaço de papel, colocar em uma caixa e enterrar para que fosse aberta dez anos depois. No entanto, um dos jovens morre num acidente de carro enquanto ele e um amigo do grupo iam buscar cerveja. Esses dois amigos sonhavam em ser escritores. O amigo que sobrevive consegue salvar o original manuscrito em um caderno escrito pelo amigo e o publica como se fosse uma obra dele; o livro é um sucesso, diferente do segundo que ele publica, mas (ou talvez por isso mesmo) ele parece sentir o peso de sua escolha. Dez anos depois, o mesmo grupo de amigos se reúne no mesmo local e abre a caixa com as mensagens e a verdade vem à tona.


As palavras (dirigido por Brian Klugman e Lee Sternthal): Rory Jansen trabalha em uma editora e sonha em publicar um livro de sua autoria. Em uma viagem com a esposa, Dora, ela lhe presenteia com uma velha maleta que encontram em uma loja de antiguidades. Tempos depois, mexendo na maleta, descobre em seu interior um original datilografado em páginas amareladas. Ele digita toda a história e a apresenta como se fosse sua. O livro é publicado e faz muito sucesso. Até o verdadeiro autor aparecer.


Apesar de os três filmes serem meio "clichês" até certo ponto, eu gostei das histórias.

Um livro que estou para ler que toca nesse tema também é Budapeste, do Chico Buarque. Aliás, esse livro também foi adaptado para o cinema, mas ainda não vi. Em Budapeste, ao voltar de um congresso em Istambul, o bem-sucedido ghost writer José Costa é obrigado a fazer uma parada em Budapeste antes de retornar ao Rio para reencontrar sua esposa e seu filho. Seu trabalho de maior sucesso é O ginógrafo, em que o turista alemão Kaspar Krabbe narra suas aventuras amorosas no Brasil. A esposa de José Costa acaba se apaixonando por Kaspar sem saber que quem escreveu o livro, na verdade, foi o próprio marido.


COMO EU CONTRATARIA UM GHOST WRITER:

1. Conversaria com amigos e colegas da área editorial e perguntaria se eles têm alguém de confiança para indicar, de preferência que já tenha escrito outro livro com a mesma temática e/ou estilo do livro que estou precisando lançar;

2. Se não tivessem ninguém para indicar, buscaria na internet alguns profissionais, solicitaria o envio de currículo, marcaria uma reunião na editora para esclarecer dúvidas e, se eu sentisse confiança no profissional,

3. Solicitaria um pequeno teste - que o ghost writer escrevesse X laudas sobre o tema do livro a ser escrito, a ser pago pela editora independentemente de ele ser selecionado para o trabalho ou não, pois assim eu conseguiria ver a qualidade do texto, o estilo da escrita e se a pessoa é adequada para escrever aquele livro específico;

4. Ajustados os valores a ser pagos, eu redigiria um contrato abrangendo tudo que considerasse importante (incluindo valor a ser pago, prazos, eventual multa por atraso na entrega, nota de confidencialidade, responsabilidade total por eventuais plágios de outros livros ou textos da internet etc.) e enviaria para o profissional assinar.

***

Outros textos interessantes sobre o assunto:
A contratação e o trabalho de um ghost writer, do Pedro Almeida 

Sua história contada num livro por um "Ghost Writer" ou "Escritor Fantasma", por Naldo Gomes [o layout é ruim, mas o texto tem algumas curiosidades interessantes]

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